MISPLACED CHILDHOOD
Os dois meninos escolheram o mesmo jogo, o Lego, para brincarem. A professora, apesar de não ter grande fé em evitar as constantes picardias entre os dois, lá foi criando as condições para alternarem o tempo de brincadeira, uma espécie de regras do jogo, que permitia mantê-los entretidos sem darem cabo do ambiente no resto da sala.
Depressa os dois meninos criaram os rituais tão necessários para ordenarem o mundo visto numa perspectiva infantil. Enquanto um brincava, construindo peça a peça a sua casinha, o outro ficava de fora, com uma telha do caraças, a apontar-lhe os defeitos na construção.
Claro que ao fim de algumas horas o que ficava de fora até inventava defeitos só para não dar a torcer o braço roído de inveja, às vezes até mobilizavam outros meninos para mandarem umas bocas ou mesmo para de alguma forma boicotarem as hipóteses de sucesso do que estivesse a brincar na altura.
Não passou muito tempo até que um dos meninos, particularmente impaciente nesse dia para esperar pelo brinquedo, contornasse as regras do jogo e passasse a apontar os defeitos não à construção mas ao outro menino. E contou de imediato com a solidariedade do resto da turma, mesmo o sector dos que pareciam mais próximos do menino que estava a brincar há demasiado tempo.
O destino acabaria por contribuir de forma involuntária para beneficiar o expediente do menino que estava à espera. As peças disponíveis para a construção às tantas eram tão poucas que começaram a aparecer buracos no telhado e até na fachada da casinha. Ainda por cima alguns amigos do menino que brincava iam colocando peças erradas, de cores e tamanhos diferentes dos que deviam (às vezes até desviavam uma peça para o bolso, sem medo de castigos se fossem apanhados), e às tantas a casinha ficou quase à beira de desabar. E ainda havia os meninos de um colégio fino estrangeiro a fingirem que davam notas, sempre medíocres, para dificultarem ainda mais a vida ao menino que estava a brincar.
Foi aí que o menino que estava de fora convenceu os outros meninos todos a mandarem embora o tosco que não conseguia, sem peças suficientes, construir a casinha que tinha na ideia quando a inaugurou, perdão, quando lhe colocou a primeira pedra. E ainda por cima tinha estado o tempo todo a achincalhar o outro menino, a acusá-lo das piores diabruras, o que bastaria para congregar todos os meninos em torno do objectivo comum de contornar as tais regras do jogo e limitar o tempo marcado pela professora para cada menino brincar.
Por outro lado, os outros meninos sonhavam com a possibilidade de conseguirem uma brincadeira partilhada, algo que certamente agradaria à professora.
E talvez isso atenuasse, quando ela descobrisse que faltavam tantas peças no jogo, a punição sobre os funcionários da escola que eram sempre os que arcavam com as consequências, mesmo sem algum dia terem tocado numa peça e sem serem devidamente informados sequer da verdadeira realidade das regras de um jogo que nenhum daqueles meninos parecia, afinal, saber jogar.