28
Mar06
Conta-me Histórias...
shark
aqui
...daquilo que eu não vi *
Que o poeta é um fingidor já toda a gente sabe. Agora, o que é admirável é observar quem, não sendo poeta, ou nem sabendo compor duas frases gramaticalmente correctas sequer, manipula a arte de fingir com tal mestria que quase poeta se diria. (ena, até eu já versejo)
A princípio, até dá para acreditar. A necessidade aguça o engenho, como se sabe, e a manha (que até rima com sanha) adquire um refinamento digno dos guiões de Fellini. Ele são odes à Família, Deus Pátria e afins e mais as declarações incendiadas de princípios e despudores ou então verdadeiros manifestos sobre a Vida e o Amor. Que mudam de protagonistas com a leveza de quem escreve uma rima, voláteis, como o carácter de quem os profere.
Depois, o excesso denuncia a verdadeira essência, a da carência. A contínua insistência em gritar ao mundo aquilo em que se quer acreditar, revela a real inexistência do que tanto se apregoa.
O que é genuíno é óbvio e não carece de afirmação contínua, repetida, a tresandar a falso, qual néon no meio da euforia que os inebria e tira a valia ao que tanto se esforçam por fazer crer. A si próprios, mais ainda do que aos outros.
É um processo com fases diversas, comuns a todos os artistas, apenas mais ou menos lento consoante o grau de empenho e fé.
Apreciadas e facilmente identificadas por quem assiste de camarote à performance. Do subtil e vagamente tímido palpar de terreno, passa para um crescendo de exercícios práticos nas várias potencialidades a explorar, atingindo por fim o êxtase do auto-convencimento.
É nesta fase que o seu amargo complexo crónico de inferioridade se transfigura em síndrome do espelho, espelho meu, haverá alguém mais bela do que eu.
Daqui para a frente, como num processo de adicção a uma viciante droga, é preciso mais e sempre mais.
São seres humanos sui generis, estes. E é um passatempo fascinante, observar-lhes o raciocínio tortuoso enquanto se pensam (e gabam de ser!) os maiores e mais espertos. Porque perdem a noção do ridículo que a sua actuação representa aos olhos dos "outros", nós, as pessoas que vivem vidas sem alarde, tão mais ricas que as suas e, por isso, sem necessitarem de publicidade.
Enquanto manobradores da difícil arte do embarrilamento, tiro-lhes o chapéu.
Despertam-me pena, enquanto meus semelhantes que nunca conheceram melhor vida que a do fazdeconta.
Mar
* do original dos Xutos e Pontapés