NUM ÚLTIMO INSTANTE
Tentou cobrir-se com os escudos, o seu e o do companheiro morto ao seu lado, quando mais uma nuvem de setas começou a rasgar o céu com o seu zunido habitual. Não tardou a ouvir a pancada seca do metal por toda a parte, nos escudos, nos elmos, nos corpos, no chão. Ouviu os gritos também, dos mais azarados, dos que se viam trespassados pelo arsenal defensivo daqueles que no interior do castelo tentavam impedir a invasão.
Ajoelhado no chão, ele percebeu que se aproximava a hora do assalto final quando vinte homens se dividiram em duas filas e levantaram o enorme aríete apontado ao portão principal. Ouviu as ordens para desembainhar espadas, válida para todos quantos ainda combatiam, todos quantos ainda podiam avançar para o passo seguinte daquela batalha sem tréguas que há dias mantinha o seu exército acampado num cerco montado para fragilizar os defensores, a quem os mantimentos há muito já deveriam escassear.
Estariam certamente enfraquecidos, apesar da resistência que ofereciam, a luta que persistiam em manter acesa porque teriam tudo a perder uma vez concretizada a ocupação por parte daqueles a quem chamavam inimigos mortais.
A primeira fileira, lanças levantadas, já estava ordenada por detrás dos calmeirões designados para embaterem com o pesado aríete na última barreira entre o lado de fora, gente determinada em acabar com o último bastião defensivo daquela nação orgulhosa, e o lado de dentro, feito de pessoas de pedra como pareciam aos que viam outros soldados verterem o seu sangue naquele solo estrangeiro e raramente conseguiam assistir à morte de um combatente anfitrião.
O estrondo das pancadas no portão sobressaltou-o, como aos restantes, e certamente atemorizaria ainda mais aqueles que se apressavam a concentrar esforços naquele acesso prestes a colapsar à força de braços, homens enormes que urravam como animais e coordenavam dessa forma a conjugação de movimentos que os tornava impossíveis de deter naquela altura.
A madeira cedia, aos poucos partia e saltavam pedaços a cada nova investida enquanto das ameias já começava a jorrar o azeite a ferver que queimava os mais próximos da muralha como bafo de dragão.
Sentiu acelerar o coração quando a primeira brecha abriu e um pedaço de luz se viu do interior, a iminente entrada do invasor no perímetro defendido com bravura por homens de armas como ele, guerreiros recrutados pelos senhores endinheirados a quem prestavam vassalagem em troco de esmolas que para a maioria pareciam fortunas pois bastavam para matar a fome aos seus.
Era essa a única motivação que os levava a partir para batalhas que nunca percebiam na sua verdadeira dimensão, diziam-lhes apenas que só a vitória interessava ou seriam eles a ocupar o mesmo lugar dos seus inimigos mas nas ameias dos castelos no Reino que os enviara para ali.
O portão cedeu por fim e os lanceiros avançaram como uma horda de bárbaros enlouquecidos pelo sangue e pela dor que os rodeava, pela sobrevivência que os obrigava a escolher entre matar ou morrer e era fácil a decisão.
Entrou na segunda vaga de assalto, entalado entre parceiros que se apertavam na passagem, atrasados no avanço pelos cadáveres dos que tombavam a cada metro conquistado, o inimigo todo concentrado no combate corpo a corpo sem margem de manobra para distracções ou pequenas indecisões que resultavam quase sempre no som horripilante da carne rasgada pelos instrumentos afiados de metal.
O inimigo era mesmo mortal, como descobriria na primeira estocada que daria em cheio no pescoço desguarnecido de um soldado da guarnição. Outros dois lhe seguiriam o destino, abatidos por golpes certeiros dos mais hábeis guerreiros que agora tomavam posições no espaço que reclamavam agora para si.
E foi então que o seu olhar se fixou no rosto de um oponente que pelo menos aparentemente parecia em dificuldade para manobrar a espada tão pesada que lhes competia utilizar. Perdeu-se naquele olhar quando a percebeu surpreendente, uma mulher demasiado valente que lutava entre homens com a fúria estampada na expressão e ele colado ao chão, demasiado perto para evitar o golpe que haveria de o matar.
Estendido no chão a sangrar, assistiria entretanto ao preciso momento em que a jovem guerreira ajoelhou finalmente, tombando mesmo à sua frente com uma seta cravada nas costas que a sentenciara com pena capital.
De olhos abertos, consciente, ela deixou-se ficar, resistente, à espera da morte que a levaria também para o céu que lhes prometiam quando as armas benziam antes de a batalha começar.
Morreram assim a olhar um para o outro, como que hipnotizados, com os dedos tingidos de vermelho entrelaçados num gesto derradeiro de compaixão.