CÚMPLICE POR OMISSÃO
Sempre que num livro ou num filme me vejo confrontado com os demasiados exemplos do nível de barbárie que a História documenta, genocídio, holocausto, massacre, extermínio e tantas outras palavras que albergam horrores que ninguém deveria algum dia conhecer, não consigo evitar o jorro de lágrimas que me denuncia lamechas e me expõe à realidade da minha condição de cúmplice por omissão em quaisquer acontecimentos que uma intervenção enérgica da opinião pública pudesse evitar neste presente no qual me compete, como a qualquer pessoa, onde quer que seja, lutar por todos os meios ao alcance pela erradicação de todos os resquícios de desprezo pela vida e pela dignidade humana que possam eclodir sob capas políticas, religiosas ou outras, num ponto qualquer do planeta.
É difícil de gerir, o equilíbrio entre o lirismo de querer acreditar na bondade da natureza humana e o pragmatismo de actuar em força e sem contemplações contra as manifestações que desmintam esse pressuposto. É ainda mais difícil de vencer o desejo de vingança, este por si mesmo uma derrota, para sentir algum sabor a justiça no macabro prazer que qualquer retaliação faculta. É impossível, no entanto, cruzar a ténue linha que nos deita a perder enquanto pessoas de bem por incentivar o (ab)uso da força na manutenção de uma segurança tão débil quanto ilusória.
Nenhuma revolta, justa ou não, pode ser esmagada à bruta pela força das armas. O mesmo espírito dos resistentes que ao longo dos tempos enfrentaram o mal olhos nos olhos está presente nas gerações que o transmitem sob os pretextos ou atenuantes mais à mão, perpetuando-se dessa forma na memória colectiva de povos cansados de sofrer, mas calejados o bastante na arte da sobrevivência para ludibriar e combater sem tréguas, por desgaste, qualquer agressor.
São as lições que a História nos oferece e deveriam suscitar um alerta permanente, sempre que constem tiranias, ditaduras, regimes fanáticos em embrião que possam constituir uma ameaça que nascerá da conjuntura como da reacção à injustiça que não poderemos, igualmente, tolerar.
Matar o mal pela raiz não pode depender de operações militares cirúrgicas que decepam a esperança com a primeira vítima criança que qualquer acto de guerra possa provocar. Tal como não é razoável acreditar que alguma paz dure para sempre enquanto existirem focos de fome, de repressão, de miséria, de injustiça, de desequilíbrio tão flagrante como aquele que arrasta para a morte clandestina nas águas do Mediterrâneo milhares de cidadãos do hemisfério sul em busca de uma vida melhor que lhes negamos cá como nas suas terras de origem entregues ao caos.
Choro, sim, perante a dimensão do horror com que alguns dos tais episódios “irrepetíveis” conseguiram provar-nos que somos, a Humanidade, capazes de atingir. Visto a pele de pais, de filhos, de pessoas como eu que se perderam num turbilhão com que o seu tempo os armadilhou.
E envergonho-me, muitas vezes, do meu papel indirecto em tudo aquilo que não impeço e de que tomo conhecimento, sempre tarde demais, no conforto burguês e civilizado, dos filmes, dos livros e, pior que tudo, dos telejornais.