02
Fev06
SONHO HÚMIDO
shark
Foto: sharkinho
Vinha frio lá de fora.
Tinha que calafetar os sentidos, abandonar os pruridos e seguir o trilho deixado por quem não ficou para trás e o ajudava pelo caminho, uma luz.
Perseguir o calor, a alternativa melhor para fugir à fúria gelada da desforra mal disfarçada do busto que gostava de fazer de conta. A política correcta da palavra mais certa, soprada entre os dentes, como a flauta encanta serpentes com a música sibilada.
E tombaram no abismo sem fim, para lá da amurada, os seguidores de Hamelin na barca naufragada.
A cena mudou.
No meio do arvoredo agitado pela brisa, excitado pela fricção das palavras que consolam (à falta de melhor), está o sonho desfeito, a utopia que se esfrangalhou.
E na expressão sonsa do galináceo, ave de rapina com penas de algodão, desvenda-se o mistério daquele tom aparentemente tão sério que pugnava pela virtude. Mas falhava amiúde à promessa, jurava confiança e oferecia desilusão.
Um cenário surrealista, agravado à força pelo frio de rachar. Começaria a nevar, nesse dia, se a nuvem que o cobria não fosse sonhada. Caiu a chuvada, limpeza a seco do céu. A roupa suja estendida no varal era apenas uma amostra do enorme vendaval de porcaria, o futuro desenhado nas nódoas que são. Um problema, a brancura do tide no lençol do fantasma transformado num papão.
A justiça também marcou presença, depois da indiferença finalmente despertou. Dona coruja falou. Salvaram-se os valores fundamentais. Criaturas anormais acossadas pelo medo, unidas em segredo para a consumação do festim. Consciências absolvidas à boca cheia, a orgia de uma panaceia colectiva para o mal personificado, o falso iluminado pelas velas do ritual de expurgação.
Penitência do prevaricador, a sua essência de pecador sentenciada sem questionar.
Plateia de inocentes, os falsos indiferentes, pequenas abelhinhas em busca do ferrão. Não estava à disposição e na colmeia não perdoaram, raivosas, e atacaram frustradas num gesto solidário a bossa do dromedário que simplesmente as ignorou.
Imóvel ficou, no meio do deserto de ideias e de acções, a contemplar com serenidade o derradeiro suspiro das vespas postiças que zumbiam zangadas, todas revoltadas e em biquinhos dos pés. Outras em silêncio.
Percorreram de lés-a-lés a floresta em ritmo de grande festa por acabar o pesadelo, dar início ao degelo que a primavera traria. Palmadinhas nas costas como prémio de compensação, tão bonitos que nós somos, os que completámos a missão. Já arde na fogueira inquisitória o abeto enregelado do cemitério ali ao lado, tapava a vista para o génio e ofuscava a bela história que se poderia contar, uma canção de embalar num ritmo pachola.
A versão muito florida de uma selva envaidecida por saber bater o pé.
Ao ritmo descompassado de quem chegou atrasado para o beijo da despedida. Proibição de participar no doce despertar da bela adormecida que assim ressuscitaria como alma penada com a água gelada que o balde despejou.
(Muda a cena outra vez)
E foi assim que ele acordou.