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Dez04
MANTENHA-SE VIGILANTE!
shark
Preparava-me para tomar um duche e o Futebol Clube do Porto preparava-se para se sagrar campeão mundial pela segunda vez. Nóque, nóque!
Confesso que não é costume baterem-me à porta nos domingos de manhã. Quem o faz arrisca-se a enfrentar a fúria do tubarão. Vesti qualquer coisa à pressa e abri a porta com ar de quem acabou de sair da cama e não está com disposição para socializar. Deparei-me com uma gaiata, adolescente, vestida à anos 50, mais o pai, um invisual cinquentão.
O protesto morreu na minha garganta e acabei por balbuciar um fáchavôr de dizer.
E eles disseram. Com a eficácia de dois chineses praticantes de pingue-pongue em alta competição. O pai afirmava, a filha folheava a Bíblia durante cinco segundos e recitava o trecho da confirmação.
Eu insistia na minha firmeza agnóstica e a dupla contrapunha sem hesitar. O pai afirmava e a filha zás! E eu olhava alternadamente para um ou para outro, apoiado na porta entreaberta. O Porto falhava uma grande penalidade, era o que me parecia, do pouco que captava do ruído de fundo da televisão, ao longe na sala.
O pai, compenetrado, utilizava a minha argumentação como um judoca. Cada vez que me era concedida a palavra, o efeito bumerangue estava lá para me arrepender. Aliás, o meu arrependimento parecia o objectivo último daquela dupla disciplinada. Um apocalipse ao virar da esquina e a salvação oferecida à minha porta, em versão familiar, mais uma revista gratuita para consolidar a argumentação.
Medonha, a revista Mantenha-se Vigiante!. Na ortografia (desastrosa) e sobretudo na intimidação dos pecadores da grande Babilónia. Como eu, agnóstico confesso, punido à porta de casa com o sermão enfatizado em altos berros pela eucaristia televisiva da vizinha muito católica de cima, um ritual de fé a que já me habituei como ao apito do despertador.
As únicas testemunhas do meu martírio, que deixa de haver vizinhos em casa quando algum otário se deixa caçar, eram o pai e a filha, transbordantes de satisfação por outro passo significativo rumo ao Paraíso de Jeová. E eu cada vez menos convicto do meu lugar cativo no Céu, com a cidade do Porto a festejar a tremenda vitória a que não pude assistir e o meu Benfica goleado pelo Belenenses, sem apelo, para complementar. Mais a ameaça do extermínio (quase) total do Mundo às mãos dos anjos vingadores e de um Jesus Cristo regressado com muito mau humor, tudo bem claro no panfleto em brasileirês. Mais a música sacra da vizinha, banda sonora do meu purgatório dominical.
Nosso Senhor que me castigou algum defeito me encontrou...