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CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

19
Jan22

A posta que nos dá um presente

shark

É como se o passado quisesse poupar a maçada. Tranquilo, a desaparecer aos poucos, diluído numa realidade presente que nesse passado seria difícil conceber, na tentativa fútil de adivinhação daquilo que o futuro traria.

Desvanece-se aos poucos, sem alarido. Local a local, circunstância a circunstância, pessoa a pessoa. Tudo morto, ou simplesmente arredado da vida a acontecer. Quase a mesma coisa, afinal. Apenas memórias inúteis, exceptuando as lições mais as melhores recordações de que se faz a experiência de vida, a boa como a má. Sem nexo num contexto distinto, numa existência que o torna, o lastro do passado, quase absurdo.

Discreto, o passado varre parte de si próprio em silêncio para debaixo do tapete que hoje pisamos, a parte irrelevante como a entendemos à luz daquilo que se passou quando esse passado nos moldou o caminho a percorrer. Novas prioridades, conjunturas alteradas, diferentes perspectivas. Tudo a ajudar para o presente ocupar o estatuto que lhe é devido.

E o futuro não passa de prometido.

 

17
Mai17

A posta num momento National Geographic

shark

Basta uma criatura sincera e espontânea no seio de um grupo de hipócritas para as ligações entre essa frágil estrutura colapsarem. Ou pelo menos para entrarem no limbo das relações, aquela paz podre feita de períodos mais ou menos longos de afastamento típicos dos arranjos de conveniência.

Para os hipócritas, os sinceros são uma pedra na engrenagem do seu business as usual, do seu laissez faire, laissez passer tão conveniente para as proximidades forjadas ou alimentadas por elos de ligação pouco mais que institucionais. Por vezes são até mais desconfortáveis do que um grão de areia clandestino no interior de um preservativo, capazes de tornarem num inferno o funcionamento de grupos e de grupelhos baseados no faz de conta emocional.

Sim, os ajuntamentos de hipócritas funcionam em muito como as empresas. Interessa-lhes mais os fins do que os meios e há sempre um lucro a extrair que constitui, na prática, o único pretexto para a ligação. Claro que nem sempre é de dinheiro que se trata, basta o benefício da salvaguarda das aparências para justificar a manutenção de uma proximidade fictícia. Contudo, o oportunismo é uma característica corrente no hipócrita comum, está na essência dos sorrisos forçados como na insistência em rituais de confirmação, preços a pagar pelo benefício extraído.

A ilusão de um laço afectivo constitui, em boa parte dos casos, o único retorno proporcionado ao hipócrita menos ambicioso. Aguenta tudo, até mesmo a ferroada ocasional de um sincero no verniz ainda por secar, em prol do sentimento de pertença ao colectivo, ainda que este se revele disfuncional. O hipócrita move-se também pela esperança em ganhos futuros, pela fé de que a sua persistência possa ser premiada quando algum sincero mais inconveniente acabe finalmente expurgado do mecanismo com base num pretexto qualquer.

O hipócrita, como qualquer parasita, reage de forma hostil a todos os obstáculos à manutenção do respectivo estatuto, sendo essa, de resto, a única manifestação de algum tipo de espontaneidade na sua natureza artificial. A sinceridade, endógena ou exógena, constitui a maior ameaça à preservação da espécie e é por isso combatida pelo hipócrita mais feroz como uma infecção. Oculto na folhagem da mentira e do embuste, este espécime comum na selva urbana aguarda o momento certo para armar a rasteira ou, no caso dos mais cobardes, para rentabilizar a ausência voluntária dos sinceros em proveito próprio. Para o efeito, o hipócrita recorre ao seu poderoso arsenal de venenos para mentes fracas ou, quando inserido num rebanho mais imbecil, à sua habilidade para a camuflagem de vitimização.

O grupo de hipócritas, pela sua flexibilidade de critérios e pela extraordinária capacidade de adaptação aos ambientes plásticos, sobrevive aos mais duros golpes na carapaça colectiva e constitui por isso o equivalente às baratas após um holocausto nuclear.

Isso explica a proliferação do género e a sua sistemática projecção, em detrimento dos vulneráveis sinceros, para o topo da cadeia alimentar nas lixeiras que constroem, com infinita paciência, como habitat preferido na sua forma preponderantemente merdosa de organização social.

03
Abr17

A posta perdida

shark

Ajudar quem precisa não pode, não deve, ser um gesto interesseiro a qualquer nível. Nem mesmo basear-se no pressuposto da retribuição posterior, algo que torna qualquer acto de generosidade num simples investimento a prazo, numa atitude capitalista.

 

O apoio a quem, por qualquer motivo, vê a vida afundar-se em conjunturas aziagas é, deve ser, um impulso espontâneo daqueles que nos distinguem enquanto seres humanos dignos desse nome. E não implica retorno ou qualquer tipo de reconhecimento. As medalhas devem sentir-se recebidas na confirmação do impacto positivo que se tem na existência dos outros, na satisfação do dever cumprido em matéria de construção de um mundo melhor.

Contudo, é legítimo ambicionar que esse mundo no qual, ainda que a um nível micro, se contribua com o melhor de nós mesmos para valer aos outros nas suas fases piores desenvolva o gosto por se disponibilizar da mesma forma. Por se provar melhorado, por contágio.

Infelizmente, não é assim que a coisa funciona no primado do cada um por si. Independentemente da postura que alguém assuma ao longo da vida, nenhuma garantia daí sobrevém de poder contar seja com quem for nos momentos menos bons. Pode esperar-se, isso sim, a habitual hipocrisia dos falsos preocupados, a palmadinha nas costas que apenas traduz a sua satisfação por não partilharem as mesmas aflições e não se materializa em porra alguma de positivo.

De resto, o conselho que é dado a quem padeça de algum tipo de fragilidade é que a esconda, que não revele em momento algum a fraqueza que, na prática, apenas serve como sinal de alerta para quem se sinta potencialmente alvo de pedidos de ajuda, essas maçadas como a maioria as entende no conforto de uma vida estável e abastada.

Aos indicadores típicos da mó de baixo como o povo a tipifica sucede-se a debandada mais ou menos apressada, mais ou menos óbvia de quem se vê demasiado próximo de alguém que mergulhe no inferno da decadência. O que valemos é o que temos e quando não temos assumimos o estatuto de assombrações. Negar esta evidência é confirmar o seu pressuposto, é exibir ignorância acerca de como a vida das pessoas pode tornar-se insuportável sob a pressão inerente aos fracassos ou mesmo aos azares que podem atingir qualquer um de nós.

De pouco interessam os passados quando os presentes denunciam futuros pouco risonhos. Não somos o que fomos, mas apenas o que se presume viremos a ser com base naquilo que temos para mostrar de nós em dado momento. De nada vale, sequer, o tipo de pessoa que escolhemos ser. Bons ou maus, o tratamento reservado aos que tropeçam é o mesmo: o de se levantarem do chão ou de lá permanecerem inteiramente por sua conta. Qualquer excepção a esta regra, a verificar-se, implica algum tipo de moeda de troca, de cedência, ou mesmo de humilhação.

Ninguém dá nada a ninguém, é um facto universal, um dado adquirido da sociedade moderna de que tantos se orgulham quando, na verdade, a maioria deveria a cada momento envergonhar-se.

E a vergonha na cara deveria bastar para que quem investe na caridadezinha de circunstância, feita de palavras ocas ou de gestos interesseiros, não acrescentasse, à desilusão de quem precisa e nada recebe, o nojo de quem também perde na aceleração das agruras da vida o travão piedoso para o excesso de lucidez.

15
Mar17

Portas de saída

shark

No espaço de alguns dias, uma mulher e um homem suicidaram-se em Portugal por motivos cada vez mais comuns na nossa actual realidade. Ela, por estar na iminência de uma acção de despejo; ele, aparentemente por estar a sofrer o que sentia como uma humilhação no local de trabalho (acabando, de resto, por se matar na dependência do banco onde exercia funções).

Estes dois exemplos de uma modernidade indesejável, marcada por uma crise sem fim à vista, ilustram o grau de desespero que as pessoas, quaisquer pessoas, podem atingir quando submetidas à pressão esmagadora inerente a um trambolhão social.

 

Aquilo a que chamamos sociedade, corroída por algumas décadas de franca expansão do individualismo, está a tornar-se numa ameaça para os cidadãos apanhados em falso pela vida. Com ligações de amizade e até familiares cada vez mais reduzidas ao cumprimento de rituais, à manutenção de aparências, as pessoas interagem cada vez menos e fragilizam-se cada vez mais. Num contexto de crise, nomeadamente nos grandes centros urbanos onde as relações de vizinhança se resumem a encontros de raspão nos ascensores, indivíduos e pequenos núcleos familiares são triturados sem dó pelas eficientes máquinas públicas e privadas que tudo fazem para transformar cobranças difíceis em punições para quem, com ou sem culpa no cartório, fraquejou ou se tornou no dano colateral de uma redução de custos qualquer.

 

 

Na ressaca dos anos 90, ao longo dos quais foi incutido na população o sedutor conceito do empresário em nome individual, muitos abandonaram empregos para criarem o seu. Foi o tempo dos diesel com dois lugares, das urbanizações de luxo ao alcance do cidadão de classe média, dos empréstimos fáceis sob pretextos absurdos (até para as férias ou a compra de acções) e sempre sob o pressuposto de uma prosperidade futura, garantida por via do milagre comunitário dos euros aos milhões.

Esse numeroso grupo de arrojados empreendedores foi dos primeiros a sentir na pele o desabar das ambições desmedidas, quando os pequenos negócios construídos por amadores entusiastas com base no recurso ao crédito e/ou no esbanjar das suas poupanças empurraram boa parte de novo para o mercado de trabalho, já em queda, e deixaram os restantes em aflição e a empurrarem os problemas com a barriga ou mesmo a terem de recomeçar do zero. Ou do menos qualquer coisa.

 

A primeira década do século XXI conheceu, já perto do final, a explosão das várias bolhas que a bebedeira de uma prosperidade a qualquer custo criou. E custou, imenso, mesmo a quem, com emprego estável ou rendimentos elevados, assumira compromissos que a própria banca ou entidades para-bancárias filtraram como razoáveis antes de ser pela primeira vez divulgado o nojento chavão do viver acima das possibilidades. O bode expiatório da crise passou a ser o cidadão incumpridor, com consequências devastadoras não para quem é caloteiro ou malabarista mas sim para quem, com vergonha na cara, não possui estrutura emocional ou psicológica à altura da dignidade dos seus princípios.

A sociedade em aflição do cada um por si tolera sem esforço o fim social dos seus membros em desgraça, desertando sem cerimónia das vidas estragadas que são guerras perdidas e aceitando as desculpas de maus pagadores de quem em boa medida os criou: o sistema financeiro aldrabão e o Estado seu refém, com a parceria consolidada por vários políticos que, não por acaso, estiveram ligados à destruição da banca que tanto endividou o país. Desamparados e fragilizados pelas consequências nefastas desta conjugação de factores, milhares de cidadãos contagiaram os mais próximos com as suas perdas, quem a estes podia recorrer, enquanto outros, isolados, viram as vidas viradas do avesso pelo sistema criado para os pressionar e espremer ao primeiro sinal de incumprimento. Ou ainda antes, no posto de trabalho cada vez mais precário num tempo de flexibilidade laboral desmesurada.

 

É deste grupo de párias como nos fazem sentir que faziam parte o homem e a mulher de que vos falei à entrada. Escolheram uma das poucas portas de saída.

04
Out16

São sombras

shark

São sombras. Projectadas numa das paredes de um espaço hermético para distraírem a solidão, desenhadas por artistas da ilusão que vivem dos olhares alheios que lhes mitigam a sede de um protagonismo qualquer.

Histórias mal contadas, sombras de homem ou de mulher, disfarçadas de coisas a sério numa vida de realidades magoadas sem querer, porque tudo o que se faz de errado era só a brincar e cada sombra mal definida é apenas a culpa solteira de uma má interpretação.

Esboços grosseiros de uma representação na feira das vaidades escondidas nas entrelinhas de um argumento para o filme a preto e branco de sombras que não conhecem a cor e parasitam os arco-íris na ingenuidade da imaginação.

São sombras. Camufladas em paredes mal pintadas, reféns da escuridão.

03
Ago16

Sem marcas de travagem

shark

Ias na boa, pela vida fora, sempre a direito, mais curva, menos curva. Velocidade de cruzeiro, dentro dos limites que te impõem porque se calhar não sabes tomar conta de ti. E dos outros que podes arrastar nos teus despistes.

Estavas a atinar. Seguias o caminho sem te meteres em atalhos. Sem arriscares os becos sem saída no final das estradas que levam a lado nenhum, atento aos sinais, certinho mapa fora, sempre nas linhas traçadas por quem já lá chegou. Porque se calhar perdias-te, vida complicada, cheia de desvios, percalços e tentações. E os outros que podem desencaminhar-te para as vias secundárias, tresmalhados do rebanho imobilizado no meio do trânsito medonho da vida como dizem dever ser.

Sempre com o pé em alerta, em permanente carícia ao pedal do travão. E a aceleração controlada, a vida tem vigilância instalada para caçar os mais apressados, aqueles endiabrados corredores que não respeitam as regras da circulação adequada numa vida como dizem dever ser percorrida desde o ponto de partida até outro ponto qualquer.

Na boa, vida adentro, sempre a direito por onde for permitido pelo código seguido por todos e por um. E esse és tu, cumpridor, olhos bem abertos à sinalização vertical mais os traços contínuos que são as linhas que nem podes pisar, sempre a direito pelo troço mais recomendado para atingir um objectivo volante, uma miragem circulante parecida com uma cenoura motorizada. Um ponto de chegada repleto de reticências e de interrogações.

Na vida a circular, no eterno retorno ao caminho mais indicado para chegar a algum lado, sem saber onde nem porquê. O pára-arranca forçado, a ilusão de mudança que afinal está sempre engatada na mesma posição.

Distraem-te estas congeminações quando te confronta pouco adiante uma inesperada bifurcação. Abrandas a passada para tomares a decisão mais acertada, pela esquerda ou pela direita, por ali ou por além, rejeitas o impulso instintivo de seguires por onde te apetecer porque a vida como dizem ser está reflectida nas indicações de terceiros, nas opiniões prioritárias de quem já por ali passou.

 

Ninguém buzinou para te avisar da traseirada, tinhas a vida quase parada e ignoraste as lições reflectidas nas suas memórias do espelho retrovisor.

Já estavas com o pé no acelerador quando se produziu a ocorrência. Tinhas decidido arriscar uma abordagem diferente, uma escolha inconsciente e desprovida de orientação, pela tua própria cabeça, pelo teu próprio coração, estrada fora até ver.

De mãos na cabeça pelo que sentes como uma injustiça, questionas a vida: não fazes sentido algum e isto prova que tenho toda a razão!

E ela, de passagem, sussurra-te:

Esqueceste-te de ligar o pisca, cabrão…

05
Mar15

A posta no fogo que arde

shark

Uma das coisas que aprendemos logo ao início da nossa percepção das coisas é o facto indiscutível de a vida nos dar lições. Essa mestra invisível bem cedo nos ensina que devemos evitar as esquinas dos móveis com a cabeça, tal como explica de forma clara e sucinta o quanto é verdade aquilo que os progenitores dizem do fogo.

Queima a valer e dói que se farta, aprender assim. Mas o método de ensino é muito eficaz e existe progressão na aprendizagem, pois a mesma cabeça que nos avisa que devemos protegê-la das esquinas pontiagudas continua pela vida fora a relembrar-nos lições que deixamos escondidas nos bastidores da memória.

 

É disso que se faz a história da vida de alguém. De lições. De aprendizagem que podemos utilizar a nosso favor ou ignorar e cometer o maior dos erros que é repeti-los. Esse facto pode até, aliás, considerar-se uma raposa. O erro de palmatória clássico corresponde a uma reprovação, pois até a vida percebe que só um burro incorre na asneira de ir segunda vez à caixa de fósforos depois da primeira queimadura.

 

Contudo, e a vida é um permanente porém, as turmas dessa escola exemplar congregam multidões de asnos capazes de darem cabo da vida por não lhe respeitarem as lições. Somos, esse grupo de cábulas, eternos repetentes. Nem conseguimos interiorizar a diferença entre errar muito, mas diferente (aprende-se sempre qualquer coisa) e errar muito e sempre estupidamente igual.

 

Depois um dia a vida esfrega-nos nos olhos a matéria, a lição mal estudada no passado é repetida num qualquer agora. A ver se o aluno retém qualquer coisa e acorda.

Quantas vezes a aula onde estivemos mais desatentos vem a revelar-se a mais valiosa para ultrapassarmos os testes que a vida nos marca…

Marramos (contra o comboio de Chelas, se necessário) até conseguirmos fixar parte da matéria que possa, pelo menos, garantir a positiva. Fazemos cábulas como saída de emergência para uma branca daquelas que os nervos nos dão e mostramos ter aprendido a lição, concentrados o bastante para decifrar os sinais que nos recordam os erros do passado que urge não repetir.

 

E tantas vezes o único erro é insistir.

06
Dez14

A posta que não ouves

shark

O sentimento de revolta é um dos que mais mobilizam qualquer pessoa. Seja provocado por motivos plausíveis ou apenas fruto de um raciocínio mal formulado, ou mesmo de um erro de interpretação, desenvolve-se como um tumor maligno enquanto persistir a questão que lhe deu origem.

De entre as revoltas possíveis, a revolta surda é potencialmente a mais nociva. Sobretudo porque tende a emudecer.

 

O cliché da panela de pressão veste como uma luva qualquer descrição da revolta surda enquanto factor de perturbação. A pessoa acumula essa força interior mal contida, absorve cada sinal, cada confirmação, nem sempre fidedigna, da legitimidade da sua ira. A pessoa ou o país.

 

É sempre de estranhar quando alguém, ou um povo, sente na pele o efeito de injustiças que se somam às provocadas por um rácio desfavorável entre a sorte e o azar e opta por refilar em surdina.

Aos poucos, a revolta surda vai exprimindo o seu paralelo com um vulcão. São pequenos abalos sísmicos, desabafos soltos aqui e além, aumento da concentração de gases perigosos, a mente a abdicar da racionalidade sem se aperceber. Indicadores a que poucos atribuem relevância e afinal são gritos de alerta para a iminência de uma erupção.

 

A revolta surda não sabe falar. A sua linguagem é equivalente à de uma granada de mão. Aparentemente inofensiva até alguém lhe puxar pela cavilha e o inferno acontecer, o caos espelhado em estilhaços aleatórios que atingem quem estiver mais a jeito.

Alimenta-se a si própria, sem controlo, uma vez deixada à solta na razão. E é essa a primeira vítima do massacre subsequente à revolta engolida quando a sua natureza é ser cuspida nem que sob a forma de um palavrão.

 

São poucas as escapatórias encontradas por alguém, ou uma população, na lógica que noutras formas de revolta acaba por prevalecer.

A revolta surda, por se sentir amordaçada, é mais eficaz que as restantes na arte de ensandecer.

19
Mai14

A posta que lá em baixo está o tiroliroló

shark

O falhanço tem uma característica que lhe é indissociável: só acontece a quem tenta, seja o que for.

Já o fracasso, muito confundido com o outro conceito acima, pode cobrir os rostos da maioria dos que manifestam disponibilidade para apreciarem ou mesmo criticarem quem falha. Mas tenta. Isto porque só os fracassados reúnem o tempo e a motivação, na ausência de outras, para se dedicarem à avaliação do desempenho de outrem, quantas vezes por não ser possível avaliarem o seu, inexistente.

 

Por outro lado, a avaliação de terceiros peca sempre pela grosseira subjectividade implícita no patamar (pedestal?) no qual se coloca quem debita bitaites sem saber do que se trata. Quem nada faz não consegue avaliar quem faz alguma coisa, é uma lógica inevitável.

A maior debilidade do observador, fracassado, consiste precisamente na correcta avaliação da sua própria posição numa escala imaginária (normalmente substituída pelo rigor de quem topa o fracasso à légua e chama os bois ou as vacas pelos nomes). Uma vez errado o ponto de partida, a observação e subsequentes comentários desviam-se do alvo e, regra geral, acabam num ponto de chegada que são os próprios pés.

É o drama permanente da pessoa fracassada, quase sempre apanhada pela incoerência na argumentação, pelas partidas que nos prega a imaginação quando a inteligência falha nas contas. De si mesma, também.

 

O falhanço beneficia, por tudo o que acima afirmo, de uma maior compreensão por parte dos outros. A pessoa falhou mas (e porque) tentou. Outras nunca falham porque passam os dias entretidas a explorar os efeitos terapêuticos das falhas dos outros na camuflagem das suas eternas falsas partidas para um topo que vêem à distância, ao nível rasteiro de quem não arrisca falhar porque não tenta. Por ser cobarde, por ser medíocre ou apenas por ser incapaz.

O fracasso deve-se quase sempre à inércia ou à ilusão (a mania das grandezas é um clássico) que a legitima. A pessoa que se sonha no cume da montanha deixa sempre a escalada morta à nascença no sopé. Por isso mesmo quem falha volta a tentar e quem fracassa limita-se a observar o esforço alheio, numa busca doentia de vitórias nas derrotas de alguém para lhe somar pontos negativos e, alegadamente, deixar essa pessoa abaixo do zero absoluto que qualquer medíocre representa.

 

Ainda dava para esticar mais um nadinha a corda ou atar um tudo nada o nó. Mas no fundo isto está tudo ligado.

09
Out13

A posta na plástica

shark

É fácil rotular o cuidado (que se tem por excessivo) que algumas pessoas dedicam à sua aparência. Basta considerar coisas como o botox, o silicone ou o branqueamento anal.

É fácil porque é excessivo. Porém, é impossível traçar uma linha a partir da qual já podemos catalogar um excesso, salvo raras excepções, sobretudo num domínio em que cada um/a sabe de si e todos têm o direito a não levar com considerações de terceiros acerca de opções tão pessoais.

Claro que isto é muito claro na teoria. Na prática, apontamos o dedo a quem acrescenta as mamas enquanto reparamos que está na altura de cortar as unhas.

 

Onde quero eu chegar com isto? As tais linhas que todos gostamos de traçar relativamente às escolhas dos outros são imaginárias e subjectivas (quase mitológicas, portanto) e nunca coincidem com as das pessoas visadas.

Definimos os nossos próprios limites mas isso não nos impede de os alterar ao longo do caminho, nem que pelo efeito tramado da passagem do tempo no nosso visual.

Alguns dos que se chocam com o excesso de maquilhagem de outrem pintam o cabelo de outra cor que não a sua, deitando às urtigas o tal conceito do artificial que, bem vistas as coisas, veste os dois exemplos em causa ainda que com diferentes (e hipotéticas) gradações.

 

É o tal piso escorregadio dos limites e das avaliações quantitativas, nos outros como em nós. Às tantas, mesmo os que se afirmam alheios a essas coisas da aparência acabam um dia confrontados com a realidade da sua. E lá vão por água abaixo os argumentos “para fora”, na reacção hostil à verdade que qualquer espelho insiste reflectir.

A aparência, que não conta para ninguém, é lixada quando constitui uma clara desvantagem na interacção com os tais outros que também afirmam não ligar coisa alguma e depois a pessoa cai do céu quando percebe que falar é fácil e que toda a gente vai concentrar a atenção na borbulha feia por cima do nariz.

 

Para felizes contemplados com um visual agradável de origem o problema pode assumir proporções mais sérias, pela novidade da perda de confiança em si mesmos, o abanão num dado adquirido tão fácil de tombar pelo efeito da perda de um dente frontal ou de largas porções de cabelo. Ou das primeiras rugas. Ou de outra coisa qualquer que se imponha como um handicap potencial e seja demasiado óbvia para dissimular.

É nessa altura que a aparência passa de figurante a protagonista e o filme é quase de terror.

 

Tudo é muito relativo e de estanque já nem se safam as verdades ditas universais como, por exemplo, a que dizia que as pessoas e os livros não se julgam pela capa.

Nas bibliotecas como no resto da vida, são instintivamente escolhidos os mais apelativos, os mais perfeitos, os mais bonitos, os mais jovens e depois do que a vista selecciona, só depois, podem eventualmente impor-se outros detalhes a que chamamos “as coisas importantes” ou assim.

E o resto, perdoem-me a franqueza, não passa de mais um politicamente correcto folclore das boas intenções.

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