20
Fev07
NAVEGAÇÃO COSTEIRA
shark
Foto: Shark
Como um louco deixou-se encharcar pela chuva a cair que espantava todos os outros do terrível fantasma de uma simples constipação.
Sentado cogitava e nada lhe molhava o raciocínio ou mesmo a vista perdida num horizonte sem perturbações onde podia seguir o voo das gaivotas com o olhar.
Por isso deixou-se ficar no banco à beira do rio quando toda a gente fugiu da bátega inesperada sobre a multidão alvoroçada e de repente o silêncio se instalou em redor do louco que pensava sentado e permaneceu alheado a tudo aquilo que não pertencia ao mundo que acontecia no interior da sua mente concentrada noutra coisa qualquer.
O som do vento que soprava a água que se agitava à superfície do rio em abraços às gotas que com ela se reuniam caídas do céu. E o ruído distante do burburinho insistente nos subúrbios da capital que deixara para trás enquanto caminhava rumo a um espaço sentado onde pudesse pensar.
E ele sozinho a ficar, indiferente aos que debandavam do idílio temporário que escolhera para si naquele lugar e não partilhava com quem pudesse interromper a fluidez do pensamento naquele precioso momento de serena contemplação que lhe inspirava a conclusão de uma ideia ocorrida pelo caminho até ali.
A chuva a aumentar de intensidade, nas suas costas a cidade e o resto do mundo a acontecer. Sozinho a viver um lapso de tempo tal como escolheu, um tempo que valeu por dias de terapia nas garras da psiquiatria ou meses de frustração a ruminar uma emoção negativa. A sós, na estiva do seu porão.
E no meio da cogitação a liberdade desenhada no céu cinzento pela passarada ao relento sem medo da chuva como o louco ali sentado a pensar na vida vista do lado de fora da confusão.
O rio, afluente, na progressão indiferente do seu curso para o mar. Logo ali, bem perto.
Em seu redor um deserto onde antes se reuniam famílias e se faziam vigílias, velas acesas por uma perda qualquer, abandonadas a correr quando a chuva apareceu. E ele, o louco, entendia os comentários jocosos dos seus vizinhos temerosos que fugiam à pressa de uma ridícula ameaça que em nada o assustava.
O único que ficava para assistir ao dia a partir e pensava feliz com a alegria de um petiz encharcado numa poça, chapinhado por uma moça que preenchia a sua imaginação. As saudades mitigadas dessa forma, a par com as decisões que toma observando a liberdade das gaivotas desenhada no céu mais acima.
A noite já caía e a chuva insistia quando decidiu por fim, a custo, enveredar pelo regresso à dimensão citadina, tão distante da evasão clandestina da sua mente naquele espaço amplo na margem do rio.
Lançou um último olhar às gaivotas a voar e sorriu, mãos nos bolsos e mente desperta.
Só então rumou, enfrentando a tempestade, para o seu abrigo na cidade.
Para a sua doca seca.