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CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

CHARQUINHO

Sedento de aprendizagem, progrido pelos caminhos da vida numa busca incessante de espíritos sábios em corpos docentes. (sharkinho at gmail ponto com)

13
Abr05

ERRO DE PALMATÓRIA

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Tinha nove anos de idade quando fugi de casa pela primeira vez. Saturado do clima que por lá se respirava e contrariado pela imposição da catequese (absurda, desde o dia em que o padre da igreja da freguesia me expulsou liminarmente do templo sagrado – apenas porque referi em voz alta que não sabia o que estava ali a fazer), planeei com cuidado essa manifestação de rebeldia.
O meu grande amigo dessa altura alinhou e até partilhou comigo a elaboração do plano que visava afastar-nos das repercussões da suspensão de três dias, ocorrida semanas antes, e que uniu os nossos nomes no “quadro negro” do externato em que frequentávamos o ensino primário.
Em vez da catequese, metemo-nos ao caminho sem dinheiro e apenas com o resto do almoço nas marmitas para nos sustentar ao longo da aventura.

A única regra do plano era não perdermos o rasto à linha do comboio, a fim de sabermos sempre o caminho de volta caso algum de nós se arrependesse a meio da nossa jornada de luta. E assim fizemos, correndo riscos sérios que só por mero acaso não resultaram em tragédia para qualquer um de nós. Foram diversas as ocasiões em que nos safámos à justa de um desfecho menos bom.
Depois de esgotados os mantimentos, cansados pelos quilómetros percorridos a pé e já fartos de comer fruta roubada nas mercearias com que nos cruzámos, a nossa resistência acabaria por enfraquecer. Discutido o problema e medidos os prós e os contras, decidimos regressar depois de congeminada uma desculpa infantil para o nosso desaparecimento.

Foi o meu pai que nos encontrou, já perto da escola, numa noite fria em que a vizinhança percorria por turnos as ruas em busca das duas crianças que se presumiam raptadas ou pior. Os pais do meu amigo não participariam nessa iniciativa. Estavam em casa quando o meu pai lhes entregou o rapaz e recordo a falta de entusiasmo com que receberam de volta o filho cujo paradeiro desconheciam. A queixa à polícia parecia-lhes transtorno bastante com a situação.

Consegui a custo entender-me com a família, insistindo na valia das minhas razões. A catequese deixou nesse dia de constituir obrigação e ficou encerrado o mal-estar pela vergonha da invulgar (e excessiva) punição que me havia sido dada na escola.
Mas com o meu amigo as coisas não se passariam da mesma forma. Até ao final do ano lectivo não voltaria a frequentar o externato, os pais decidiram mudar de casa e não voltaria a vê-lo até que uma extraordinária coincidência nos reuniu, anos mais tarde.

Reconheci-o entre a multidão que atafulhava o autocarro da carreira 33, dias depois de festejar os dezassete anos de idade. Estava diferente, o meu amigo, sobretudo no olhar.
Manifestei a minha alegria por reencontrá-lo mas ele não correspondeu. Nem um sorriso decente consegui arrancar-lhe, tal era a tristeza que parecia agarrada ao seu semblante como uma máscara de ferro coberta das cicatrizes de um período negro que atravessou.
Resumiu-me em poucas palavras a sua versão do que vivera na sequência da situação que nos separou ao longo desses anos.
Os pais, classe média alta e formação superior, confrontados com a maçada de criar um filho mais irrequieto do que a maioria nem hesitariam em enfiá-lo sem apelo num colégio interno, algo que inspirava terror a qualquer puto dessa época, e de onde acabaria por fugir para uma existência marcada pela marginalidade.
Deixou-se agarrar pela heroína e percorria as vielas do costume na espiral da degradação, as que a vida oferece a quem se vê só e sem qualquer esperança no futuro.

Ficou-me na memória este exemplo flagrante de como uma mesma situação pode produzir efeitos tão distintos no destino de cada um de nós. E no caso concreto, a diferença resultaria afinal das escolhas dos pais quando lhes competiu tomarem decisões e não das dissonâncias significativas nas personalidades ou nos comportamentos dos filhos em questão.
Ficou-me na consciência a noção da responsabilidade tremenda que assenta nos ombros de quem opta por ser mãe ou pai. Não há margem de manobra para a estupidez.

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