A POSTA NOS EMPREGADOS DE MESA
Numa fase da minha vida em que prestava imensa atenção ao sobrenatural (para lá das miúdas, que sempre marcaram presença no centro das atenções) cheguei a acreditar nas predestinações, nos sinais premonitórios que nos alertavam para os perigos a evitar, talvez colocados por funcionários de juntas de freguesia já falecidos e ainda assim incapazes de deixarem por cumprir a função que lhes havia sido (pre)destinada.
Claro que também andei na catequese e o efeito prático foi o mesmo, este limbo da fé onde nada é credível e tudo pode de facto existir, inclusivamente as extraterrestres ricas capazes de tirarem um gajo desta vida.
E agora esta posta muda de rumo e pego por dois momentos deste meu dia cheio de gajas pequenas em casa (nos trabalhos de grupo a coisa é rotativa e hoje – ontem – tocou-me). O primeiro foi o da experiência eleitoral, da qual tenho o privilégio de ser quase um veterano pois pude votar logo que atingi a maioridade. O segundo foi ler esta posta do Valspirina que prendeu a minha atenção num aspecto específico por onde vou dar início à tal mudança de direcção deste texto.
Fui votar e pela primeira vez em mais de quinze anos a exercer o meu inestimável direito no mesmo local parecia que tinha a mesa de voto em Deadtown. A cidade fantasma, por acaso uma vila, provocou-me arrepios bem maiores do que os do frio instalado até à periferia do meu esqueleto de eleitor.
A segunda sensação estranha foi o contacto com os autómatos da mesa de voto, três, dois deles abaixo dos trinta. Nem um retorquiu ao meu sonoro “boa tarde”. O que julgo ser o presidente da mesa estendeu a mão para recolher os cartões, proferiu o número e o nome completo com voz de morto-vivo, deu-me o boletim de voto e nem por um momento olhou para mim.
E aqui entra o tal aspecto da posta do Val que me prendeu a atenção. Como ele, falhei dois ou três actos eleitorais enquanto membro das mesas. Cheguei a estar presente a pedido do PC, mesmo nunca tendo votado no partido.
Depois a coisa passou a ser a pagantes e nunca mais ouvi falar do assunto.
A imagem das três criaturas com ar enfadado de quem exerce uma seca de função remunerada agride-me desde que de lá saí. É penoso, para quem experimentou a pica da democracia em directo, com a malta de diferentes orientações ideológicas a torcer em conjunto pela chegada de mais eleitores, um sorriso rasgado de boas vindas a cada um, felizes por poder dar baixa de mais um das dezenas de nomes na lista que nos tocava.
E depois ainda vinha a cereja no topo do bolo, a contagem onde os presentes comunas vestiam de novo a farda vermelha e impunham um rigor que quantas vezes atrasava o fim da coisa por mais de uma hora por causa de um xis que ultrapassava dois milímetros os limites do quadrado e ficava logo suspeito de nulidade.
Era uma emoção despejar a caixa metálica preta sobre uma mesa da escola ou do pavilhão.
Agora é como vos descrevi, a animação de um balcão das Finanças mãos dadas com o ambiente típico de um funeral. E eu pensei logo no da democracia, a definhar por todos os lados às mãos destas aventesmas que nem possuem o alcance necessário para perceberem um momento extraordinário bem à frente dos seus narizes imbecis, emoções a flutuarem à deriva no meio das convicções e outras coisas importantes despejadas no vácuo no interior dos seus crânios sobre-dimensionados.
Alimárias, bem pagas e com direito a balda ao serviço no dia a seguir, contrariadas pelo privilégio de poderem viver um momento que só poderia engrandecer as suas formações pessoais que aos meus olhos tanto se revelaram necessitadas.
O sinal premonitório de que vos queria falar, mesmo já não ligando tanta importância a essas coisas, foi precisamente a notícia de que a presença nas mesas passaria a ser remunerada, numa prostituição descarada do voluntariado para estes serviços que constituem eles próprios um indicador da saúde de qualquer democracia.
E a nossa, coitada, está cada vez mais mal encarada.