A POSTA NUM PRESENTE ENVENENADO CHAMADO FUTURO
Conheço-a há vários anos e tem praticamente a minha idade. Estivemos um bocado à conversa, livres de falarmos sem reservas porque ainda que não existisse o pressuposto de confiança bastaria o facto de às tantas uma pessoa perceber que não vale a pena encher chouriço com conversa da treta.
Fomos parar à complicada engenharia financeira que lhe tem sido requerida para conseguir manter a vida a funcionar, nomeadamente a das filhas que são pretexto mais do que suficiente para alguém fazer tudo o que está ao seu alcance para evitar trambolhões mais sérios.
Enquanto a ouvia fui-me apercebendo de como este tipo de conversa me é familiar, não apenas pela minha própria experiência nas difíceis negociações de quem enfrenta problemas de pilim mas porque é o tipo de conversa que ouvíamos da boca dos nossos pais quando a crise era crónica e a classe média era quase toda baixa.
A quem viveu antes do 25 de Abril não reconheço legitimidade para falar de crise nos termos em que se fala. Dantes é que era. A malta fartava-se de trabalhar e nunca havia dinheiro para mordomias. Uma televisão a preto e branco era um luxo e um carro novo era impensável. As compras eram feitas com tino e as iguarias só apareciam em meia dúzia de dias especiais e não era de caviar que se tratava mas de uma pescada cozida ou de um bife mais parecido com lombo e que não obrigava a uma sessão de martelada para ficar possível de mastigar.
Essa geração, a dos nossos pais, aprendia cedo a viver com pouco e raramente alimentava fantasias como viagens ao estrangeiro e outras realidades ao alcance de muito poucos no Portugal mais africano do que europeu.
Talvez por isso, e porque de repente começaram a poder mandar os filhos para a escola como os dos ricos e a acreditarem-nos futuros doutores (o que nesse tempo constituía passaporte garantido para uma vida noutra dimensão), foi-se espalhando a noção de que a minha geração nunca saberia o que são dificuldades e jamais teria que enfrentar os problemas que tantos cabelos brancos plantaram na geração anterior.
Contudo, essa ilusão que a entrada para a então denominada CEE tornou ainda mais tangível não era um dado adquirido e apesar de a banca ter inventado forma de lá chegarmos, às viagens, aos carros novos e até à casa própria, essa concretização do que para os nossos pais deslumbrados era um dado adquirido acabou por nos enredar aos poucos num esquema de endividamento suave concebido para tempos de vacas gordas mas letal quando começa a chover e os bancos reclamam os seus guarda-chuvas de volta.
Impensável anos atrás, a realidade do quotidiano de boa parte das pessoas da minha geração passou a incluir as mesmas horas de contabilidade analítica que se fazia quando estavam em causa as despesas correntes e, quando muito, alguma dívida contraída junto da família ou de amigos na sequência de alguma aflição inesperada. Mas as nossas despesas normais incluem coisas tão aparentemente indispensáveis como a mensalidade da TV Cabo e os nossos pais baldavam-se à taxa da tv que era apenas um dos vários papões que eles fintavam. E não foram precisos quaisquer dramas para também nós somarmos aos custos normais de funcionamento (comida, roupa, coisas assim), já de si inflaccionados pela recusa em remendar um rasgão nas calças para as manter ao serviço mais uns anos, as prestações devidas ao agiota institucional.
A minha amiga disse-me, depois de resumida a conversa de surdos com um funcionário de uma instituição financeira qualquer acerca de um crédito cuja mensalidade bateu no poste, que quer pagar tudo o que deva seja a quem for. E desabafou o facto de essa nobre intenção não fazer qualquer diferença na atitude dos credores modernos, bem como na arquitectura impiedosa dos seus processos de recuperação do malparado que transformam de um momento para o outro um cidadão normal e, pouco importa, cumpridor zeloso ao longo de anos a fio, num pária, numa pessoa sem lugar no sistema, sem direito ao mesmo tratamento de um cidadão de pleno direito que é aquele que não dá chatices a ninguém.
E é aí que a porca torce o rabo a sério quando comparamos a nossa geração com a anterior em igualdade de circunstâncias (com o credo na boca) percebemos que hoje não existe o merceeiro compreensivo mais o seu paciente livro de fiados, tal como não existe o senhorio que até conhecemos há muitos anos e que nos dá a goela de uns meses sem pagar a renda porque sabe que não ficará a arder se nos der essa abébia. E os amigos e a família estão sempre todos cheios de dificuldades e alguns olham para nós, os que se vêem à rasca, como uns inconscientes que gastaram mais do que ganham e por isso não são de fiar em termos de gestão do seu dinheiro e acabam por restar os braços abertos da cofidis ou pior para nos valer quando precisamos de evitar que nos ponham na rua sem contemplações como o sistema agora propõe aos que lhe falham com o tributo burguês.
Agora é só transportarmos a coisa para um futuro onde as reformas podem não passar de uma miragem e é fazer a conta...