DISCO RISCADO
Gostava de poder dizer-te que tudo permanece intacto tal e qual o cristalizaste na memória, sempre a mesma velha história dos tempos bons como os viveste enquanto tudo parecia tão simples para ti.
Um disco gasto, riscado pela agulha que insistes colocar sempre no mesmo lugar que é a única referência capaz de te transmitir a ilusão de uma proximidade que só nesse teu tempo tão antigo existiu. Fotos a preto e branco de momentos normais que são os dias especiais que deixaste algures de cultivar, perdido noutro lugar onde a tua lembrança se perdeu por caminhos que te afastaram de muito daquilo que, dizes agora, te fazia sentir feliz.
Vives agora numa outra dimensão, tão distante que já nem mesmo a ilusão consegue alcançar. Vives agora num outro lugar onde apenas te resta o conforto das recordações cada vez mais difusas, das emoções estapafúrdias porque dedicadas a alguém que deixaste de conhecer quando deitaste tudo a perder com o desmazelo que te arrastou para longe, como o mar o faz aos corpos estranhos, mergulhado em enganos que a tua mente inventou para preencher os espaços em branco que o teu coração acumulou.
Perdido numa ilha deserta onde te refugias agora de tudo a que a realidade não te poupou, sempre que te viste forçado a pousar os dois pés no chão que pisas sem cuidares, como sempre, de acautelar o que de mais importante deveria existir para ti.
Ausente, sempre mais e mais distante a bordo desse tempo que vives em constante repetição e há muito perdeu o sentido que ainda hoje tentas atribuir ao pouco que consegues sentir nos intervalos desse teu coma emocional.
Gostava de poder dizer-te que apesar de tudo quanto correu mal existe uma porta de saída para uma qualquer forma de reconciliação. Mas infelizmente não. Cuidaste até de transmitir como legado, a herança que negas, esse teu triste fado que empurras para as costas dos outros com a leviandade de quem não reconhece culpas e se enclausura numa cadeia de certezas absolutas que te anestesiam a consciência quando enfrentas a consequência inevitável, esta distância incontornável que aumentas a cada passo que dás enquanto tentas olhar para trás em busca de uma bóia de salvação, com a praia mesmo ali.
Gostava de poder dizer-te que ainda gosto de ti como dizem ser a minha obrigação, mesmo depois de consumada a abdicação que acabas por forçar com a displicência da tua forma de agir que se resume à ausência de qualquer acção digna desse nome. Sujeito passivo, sem nada de substantivo para oferecer.
E assim permaneces, o tempo quieto, até deixar de doer por completo a ti como a mim esta verdade que já nem sentimos vontade de encarar porque nunca a quiseste falar do lado de fora dessa pele que sinto como uma couraça impenetrável à razão, ao amor.
Esta verdade cada vez menos desagradável e mais fácil no trato porque o tempo, sensato, acaba por cumprir o seu papel (alegadamente) redentor.